Taxa do Siscomex – Round 2: Portaria ME 4.131/21
5 de Maio de 2021Perdimento de Mercadorias: A não consonância da legislação aduaneira
15 de Junho de 2021O Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV/Direito-SP tem se debruçado sobre a análise e identificação de casos com potencial subsunção à transação no contencioso tributário.
Nessa toada, para além do exame de questões propriamente materiais, podemos reconhecer questões de ordem processual responsáveis por sobrecarregar o contencioso judicial e que, inseridas no contexto da transação, poderiam elevar o nível de maturidade do sistema e refletir, ainda que indiretamente, o princípio da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CRFB).
Referimo-nos, aqui, à antiga e controversa discussão envolvendo a possibilidade de expedição de precatório em sede de mandado de segurança em matéria tributária, nas hipóteses em que a sentença concessiva reconhece o direito à recuperação do indébito tributário.
Como é cediço, o artigo 165 do Código Tributário Nacional garante ao sujeito passivo o direito à restituição total ou parcial do tributo, nos casos de: (i) cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido; (ii) erro na identificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento; e (iii) reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.
Tomada essa regra, é comum, na seara tributária, o manejo de mandado de segurança preventivo cumulado com pedido de reconhecimento do direito à restituição/compensação do indébito tributário. É justamente em relação a esse segundo ponto (a restituição/compensação do indébito) que reside a controvérsia tratada no presente texto.
Em breve síntese, de um lado, os contribuintes pugnam pela possibilidade de restituição do indébito tributário, em sede de mandado de segurança, pela via do precatório. De outro lado, Fisco assevera que, devido à natureza do remédio constitucional, não seria viável, sob a ótica formal, a expedição de precatório.
Ressalte-se, todavia, que a controvérsia refere-se à possibilidade de expedição de precatório em relação aos recolhimentos indevidamente efetuados no quinquênio anterior à impetração do mandado de segurança, já que, quanto aos pagamentos realizados após a impetração, as posturas de contribuinte e Fazenda Pública são convergentes.
Tamanha a controvérsia dessa questão, acreditamos possível resolvê-la pela via da transação, cabendo-nos, antes de assim demonstrarmos, apresentar os fundamentos utilizados, pelo Fisco e contribuinte, para sustentar cada uma das posições.
O entendimento pela inviabilidade de expedição de precatório em sede de mandado de segurança advém de duas antigas súmulas editadas pelo STF. A súmula 269 preleciona que o “mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança”, ao passo que a súmula 271 consigna que a “concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria”.
Ressalte-se que as mencionadas súmulas foram editadas em 13/12/1963, ou seja, antes do advento da CF/88. Não bastasse isso, referidos enunciados sumulares foram criados com base em precedentes (RMS 6747, RMS 10629, RMS 10065, RMS 10149, AI 26672 e RE 48567) que não versavam sobre matéria tributária, ou seja, não tratavam de restituição de indébito tributário.
Esses dados, tomados isoladamente, já poderiam ser suficientes para que fosse afastada eventual vedação à expedição de precatório em sede de mandado de segurança. Fato é, entretanto, que, com base em tais súmulas, construiu-se jurisprudência, utilizada até os dias atuais, reconhecendo a inviabilidade de expedição de precatório em mandado de segurança.
Além disso, a impossibilidade de expedição de precatório teria como fundamento o procedimento do mandado de segurança: não admitindo dilação probatória, não seria possível a prévia liquidação para apuração do indébito tributário a fim de viabilizar a expedição do precatório. Assim, a liquidação dos valores seria incompatível com o rito do mandado de segurança.
Sob essa premissa, o contribuinte, em um primeiro momento, manejaria mandado de segurança, o qual, após o trânsito da respectiva sentença concessiva, lhe asseguraria o direito à compensação. Na sequência, caberia ao contribuinte, que desejasse receber seu indébito pela via do precatório, manejar ação ordinária de repetição de indébito, para ver liquidados tais valores, considerando que o emprego de mandado de segurança em matéria tributária interrompe o prazo prescricional em relação a eventual ação de repetição de indébito tributário.
É evidente que tal entendimento caminha na contramão do ideal de celeridade e sincretismo, fortemente defendidos pelo CPC/2015. Além disso, obrigar o contribuinte a ajuizar ação de repetição de indébito para operacionalizar seu direito onerará severamente a Fazenda Pública, já que o êxito da ação repetitória, ajuizada meramente para fins de liquidação dos valores cujo direito à compensação fora reconhecido definitivamente no mandado de segurança, acabaria por gerar potencial ônus sucumbencial.
Paralelamente, outra orientação começou a despontar em âmbito judicial, reconhecendo a possibilidade de expedição de precatório em mandado de segurança destinado à restituição do indébito tributário.
Isso porque, a súmula 213 do STJ, editada em 23/09/1998, prevê que “[o] mandado de segurança constitui ação adequada para a declaração do direito à compensação tributária”. Por sua vez, a súmula 461 da referida Corte Superior consigna que “[o] contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado”.
Some-se a isso o fato de que o artigo 100 da CF, com a redação que lhe foi conferida por meio da EC 62/2009, prevê que os “pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos”. Note-se que o texto constitucional menciona “sentença judiciária”, sem restringir o procedimento adotado, se comum ou especial, o que corroboraria o cabimento da expedição de precatório para restituição do indébito tributário referente ao quinquênio anterior à impetração do remédio constitucional.
A expedição de precatório em sede de mandado de segurança, além de estar embasada nas súmulas 213 e 461 do STJ e no artigo 100 da CF/88, também tem seu cabimento de acordo com a ratio decidendi firmada nos autos dos Recursos Especiais Repetitivos 1.114.404/MG e 1.324.152/SP
No julgamento do Recurso Especial 1.114.404/MG, realizado sob a sistemática dos recursos repetitivos, reconheceu-se que, em se tratando de demanda cuja sentença possua efeito declaratório, a opção entre a compensação e o recebimento do crédito por precatório ou requisição de pequeno valor cabe ao contribuinte credor, haja vista que constituem, todas as modalidades, formas de cumprimento do julgado colocadas à disposição da parte quando procedente a ação que teve a eficácia de declarar o indébito.
Por sua vez, nos autos do Recurso Especial Repetitivo 1.324.152/SP restou decidido que: “A sentença, qualquer que seja sua natureza, de procedência ou improcedência do pedido, constitui título executivo judicial, desde que estabeleça obrigação de pagar quantia, de fazer, não fazer ou entregar coisa, admitida sua prévia liquidação e execução nos próprios autos”.
Dessa forma, seria cabível, sob a ótica procedimental, a expedição de precatório para operacionalização concreta do direito à restituição do indébito tributário referente ao quinquênio anterior à impetração do mandado de segurança, pois: (i) as Súmulas 269 e 271 foram editadas antes do advento do texto constitucional de 1988; (ii) os precedentes que deram origem às referidas súmulas (RMS 6747, RMS 10629, RMS 10065, RMS 10149, AI 26672 e RE 48567) não versavam sobre matéria tributária, ou seja, não tratavam de restituição do indébito tributário; (iii) os artigos 165, 167 e 168 do Código Tributário Nacional e o artigo 100 da CF/88 não restringem a possibilidade de expedição de precatório em sede de mandado de segurança; (iv) a interpretação conjunta dos Recursos Especiais Repetitivos 1.114.404/MG e 1.324.152/SP viabilizaria a expedição de precatório para restituição do indébito tributário referente aos cinco anos anteriores à impetração do remédio constitucional; (v) a não devolução, pelo ente federativo, do crédito tributário indevidamente recolhido, configuraria ato coator de caráter permanente, cuja prática se renova/protrai no tempo, daí advindo o cabimento do writ para retirar o ente federativo do estado de inércia, obrigando-o a restituir os valores que indevidamente recebeu pela via do precatório; (vi) é contraproducente e diverge das premissas do sincretismo que norteiam o CPC/2015 obrigar o contribuinte a ajuizar ação de repetição de indébito, além de gerar ônus sucumbencial desnecessário ao Fisco.
A despeito da posição que apontamos, não há dúvida sobre o estado de controvérsia que repousa sobre o tema, existindo fortes argumentos para os dois lados. E é justamente esse cenário de dúvida que, pensamos, poderia ser equacionado com a transação para: (i) admitir a recuperação do indébito tributário correspondente aos cinco anos anteriores à impetração mediante expedição de precatório; e (ii) viabilizar a liquidação dos valores a serem restituídos em favor do contribuinte.
A nosso ver, estamos diante de um caso perfeitamente subsumível à hipótese de transação no contencioso, com o intuito de evitar a interposição de recursos sobre o tema e o prolongamento de discussão que, em última análise, apenas tangencia a controvérsia de direito material subjacente ao processo (legitimidade ou não do crédito tributário).
A transação celebrada diretamente entre Fisco e contribuinte teria efeito liquidatório, cumprindo a função que justifica sua utilização: retirar daquele locus (o judicial) a solução de controvérsia que incrementa desnecessariamente o contencioso relacionado à recuperação do indébito em mandado de segurança –não se estaria transacionando, deixemos claro, a expedição do precatório, mas sim a liquidação do valor.
Ambas as partes seriam beneficiadas com a utilização da transação nesse contexto, evitando o prolongamento do litígio e acelerando a devolução dos valores pagos indevidamente: o contribuinte receberia o precatório referente ao indébito sem precisar manejar a subsequente ação de repetição de indébito, ao passo que o Fisco não seria onerado com o ônus sucumbencial inerente ao futuro êxito da ação repetitória ajuizada meramente para fins de liquidação dos valores.
Ademais, uma possível vantagem poderia ser agregada: a liquidação consensual dos valores a serem restituídos com o manejo de “desconto inverso”. Sob a perspectiva pragmática, pensamos que o edital de transação poderia conter cláusula estabelecendo que os valores seriam apurados conjuntamente pelo Fisco e contribuinte, fixando, inclusive, os critérios de cálculo.
Objetivamente, a transação nos casos de que falamos seria cabível quando: (i) a sentença, no mérito, é favorável ao contribuinte e considerada de difícil reversão, mas não há distinção sobre o modo como seria operacionalizado o recebimento do indébito, limitando-se a decisão a reconhecer o direito à restituição/compensação do indébito; (ii) a sentença já reconhece a possibilidade de expedição de precatório, mas a União poderia interpor recurso visando à reversão desse específico aspecto.
À luz das hipóteses descritas, essa transação seria proponível pela Administração Pública nos casos em que não há objeção explícita na sentença quanto à expedição do precatório. A ressalva é necessária, pois a transação depende da homologação do Poder Judiciário, que realiza o controle de legalidade sob a perspectiva formal. O objetivo, portanto, é evitar que o Juízo deixe de homologar a transação sob o fundamento de que o acordo entabulado entre Fisco e contribuinte violaria a decisão transitada em julgado.
JOÃO MARCELO MORAIS – Mestre em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Advogado e professor. Membro do projeto de pesquisa “Processo Administrativo, Judicial e Execução Fiscal do século 21”, referente à linha de pesquisa “Macrovisão do Crédito Tributário” do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito SP. Membro do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP.