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19 de Agosto de 2021O perdimento de bens consiste em uma sanção, amparada pela Constituição Federal e por seu princípio da legalidade, epitomizado no Decreto-Lei nº 1.455, de 07 de abril de 1976, cuja intenção é funcionar como “ultima ratio” para que a pessoa, seja física ou jurídica, reavenha seu bem antes da destinação ao poder do Estado. Tal sanção tem o condão de extinguir a relação jurídico-material preexistente entre um proprietário e seu bem, de modo que, segundo a Norma Maior, a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre as penas permitidas, a perda de bens.
É por este instituto que o ordenamento jurídico brasileiro recepcionou o chamado perdimento aduaneiro, previsto no Regulamento Aduaneiro (Decreto n. 6.759/2009), no art. 675. Todavia, quanto à forma e ao processo do perdimento, há uma grande discussão jurídica na esfera administrativa, a qual vamos adentrar mais adiante, por tratar-se de uma sanção administrativa/aduaneira.
No âmbito da administração aduaneira, a decretação do perdimento comumente ocorre quando se verifica uma violação à disposição inserida na legislação aduaneira, oriunda de importação ou exportação irregular, ou de momentos posteriores à importação e exportação de bens.
O perdimento, tratado como gênero, comporta algumas espécies, dentre as quais encontram-se o perdimento de mercadoria, o perdimento de veículos e o perdimento de moeda. Todas estas espécies estão previstas em ato infralegal (Regulamento Aduaneiro), o qual tem fundamento nas seguintes ferramentas do ordenamento jurídico: Decreto-Lei nº 37/66; Decreto-Lei nº 1.455/76; Lei nº 9.069/95 e Lei nº 10.833/03.
Como objeto de estudo do presente artigo, temos o perdimento de mercadorias na importação em razão do abandono. Nesta espécie de perdimento, identifica-se que ocorreu uma irregularidade na importação da mercadoria, de modo que a mercadoria importada foi caracterizada como abandonada, nos termos e prazos estabelecidos pela legislação aduaneira. Esta irregularidade pode ocorrer há qualquer tempo do despacho aduaneiro, ou seja, pode ocorrer antes que ele se inicie, durante o seu curso, ou até mesmo em momento posterior à sua realização, como no caso da Revisão Aduaneira, por exemplo.
A CONFIGURAÇÃO DO ABANDONO E A DECRETAÇÃO DO PERDIMENTO DA MERCADORIA IMPORTADA
A legislação (Decreto n. 6.759/2009) é clara quanto ao que se entende por mercadoria abandonada: “Art. 642. Considera-se abandonada a mercadoria que permanecer em recinto alfandegado sem que o seu despacho de importação seja iniciado no decurso dos seguintes prazos (…)”. Ou seja, o proprietário da mercadoria importada tem o dever de promover o despacho aduaneiro, dentro dos prazos legais, elucidados a seguir, sob pena de sofrer o perdimento da mercadoria, em virtude de caracterizado o abandono.
É importante frisar no que consiste o “dever” de promover este despacho. As operações de comércio exterior consistem num ciclo entre entrada e saída de mercadorias. Quando a mercadoria importada permanece muito tempo “parada” no local de depósito, acaba travando o ciclo. Por isso, é importante que o importador promova o despacho aduaneiro para liberar o local para entrar outra mercadoria e manter “vivo” o ciclo de COMEX. A manutenção do funcionamento do ciclo é vantajoso, claro, para o Estado, mas também é vantajoso para o contribuinte que não sofrerá nenhum tipo de “perturbação” estatal quando de sua importação.
Os prazos para que seja iniciado o despacho da mercadoria são: 90 (noventa) dias contados a partir da descarga da mercadoria ou 45 (quarenta e cinco) dias depois de esgotado o prazo da permanência da mercadoria em regime de entreposto aduaneiro. Todavia, o abandono de mercadoria também poderá se caracterizar pela não conclusão do despacho pelo importador, seja por ação ou por omissão deste. Nesta hipótese, se o despacho permanecer interrompido por 60 (sessenta dias), configura-se o abandono da mercadoria.
Após caracterizado o abandono, como se aplica a pena de perdimento? O Regulamento Aduaneiro, em seu art. 689, dispõe que: “Aplica-se a pena de perdimento da mercadoria nas seguintes hipóteses, por configurarem danos ao erário: (…) XXI – importada e que for considerada abandonada pelo decurso do prazo de permanência em recinto alfandegado, nas hipóteses referidas no art. 642”.
Desta forma, após caracterizado o abandono da mercadoria, de maneira resumida, o processo fiscal para aplicação da pena de perdimento é o seguinte, disposto no diploma legal anteriormente mencionado, no art. 774 e seus parágrafos: É lavrado o auto de infração (peça inicial do processo) que será acompanhado de termo de apreensão da mercadoria. Caso seja necessário, acompanhará também o termo de guarda fiscal. Após a lavratura do auto, o particular (Pessoa Física ou Jurídica) é intimado, pessoalmente ou por edital, a apresentar impugnação no prazo 20 (vinte) dias. Todavia, na hipótese de a intimação ter sido realizada por meio de edital, a contagem do prazo inicia-se 15 (quinze) dias após a sua publicação. Caso o particular não apresente impugnação, sofrerá os efeitos da revelia, quais sejam: o envio do processo à autoridade competente para imediata aplicação da pena de perdimento.
Sendo apresentada a impugnação dentro do prazo, a autoridade preparadora terá o prazo de 15 (quinze) dias para remeter o processo fiscal a julgamento, e a decisão deste processo se dará no âmbito do Ministério da Economia, em instância única. Porém, conforme disposição legal, o Ministro da Economia poderá delegar a competência para decisão, o que de fato ocorre.
INSTRUÇÃO NORMATIVA SRF Nº 69, DE 16 DE JUNHO DE 1999:
O dispositivo legal que intitula esta parte do artigo referido diploma legal dispõe sobre o despacho aduaneiro de mercadorias consideradas abandonadas e sujeitas à pena de perdimento. Dispõe que o importador, antes de aplicada a pena de perdimento, ou seja, antes de decidido o processo fiscal, poderá iniciar ou retomar o despacho aduaneiro da mercadoria, desde que cumpra os seguintes requisitos:
I – Cumprimento das formalidades exigidas;
II – Pagamento dos tributos incidentes na importação, acrescidos dos juros e da multa de mora;
III – Pagamento das despesas decorrentes da permanência da mercadoria no recinto alfandegado.
Desta forma, se o importador obtiver a autorização para iniciar o despacho, não há mais que se falar em abandono da mercadoria, e por consequência lógica, em perdimento, pois o procedimento anteriormente ilustrado torna insubsistente o Auto de Infração que caracterizou o abandono.
O Auto de Infração, conforme supra mencionado, é a peça inicial do processo fiscal, cujo objetivo não é aplicar o perdimento, mas sim esclarecer sobre a infração cometida pelo importador, que no caso é o abandono da mercadoria. Todos os prazos referentes ao Auto de Infração servem para que o contribuinte se defenda da infração (abandono) e não do perdimento.
Todavia, na hipótese do importador iniciar ou retomar o despacho sem defender-se do disposto no Auto de Infração, nos termos e autorizações legais, este torna-se subsistente, ou seja, deixa de produzir efeitos quanto ao abandono. Qualquer nova infração passível de aplicação da pena de perdimento, deverá ser esclarecida com a lavratura de novo Auto de Infração.
A legislação ainda oferece ao importador mais uma alternativa à pena de perdimento, antes de sua efetiva aplicação, que seria a sua conversão em multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria. Para isso, basta o importador requerer esta conversão antes que ocorra a destinação da mercadoria.
Por fim, na hipótese de a pena de perdimento ser aplicada, ou seja, o processo fiscal se encerrar com a aplicação da pena, ainda é possível o importador alegar a ausência de dolo no abandono na mercadoria para obter a relevação de pena de perdimento, pois o Regulamento Aduaneiro, em seu art. 737 disciplina que, para infrações que não resultem falta ou insuficiência de recolhimento de tributos, como é o caso do abandono, a Fazenda essa pena, sendo aplicada, nesta hipótese, a multa de 1% (um por cento) do valor aduaneiro da mercadoria.
A INCONGRUÊNCIA SISTEMÁTICA ENTRE NORMAS
O Regulamento Aduaneiro diz que após considerada abandonada a mercadoria, o importador sofrerá a pena de perdimento, decidida por processo fiscal. Entretanto, a redação da norma não é o mais clara possível, e acaba induzindo o contribuinte a erro. Em especial, o Auto de Infração que caracteriza o abandono é o que mais causa confusão na interpretação, pois muitos contribuintes entendem que uma vez lavrado o AI, já está aplicado o perdimento.
Tal premissa não é verdadeira, mas acaba se tornando uma opinião costumeira pelo fato da norma ser recheada de obscuridades quanto à forma, quanto ao procedimento e quanto ao objetivo da pena perdimento.
Em outro momento do processo, a Instrução Normativa SRF n. 69/1999 diz que, mesmo após considerada abandonada a mercadoria, o importador poderá requerer autorização para iniciar ou retomar o seu despacho, desconfigurando a hipótese do perdimento.
A grande problemática da aplicação da pena de perdimento está na lavratura do auto de infração. Este, como peça inicial do processo fiscal que visa a aplicação da pena de perdimento, se propõe a intimar o particular a contestar o abandono da mercadoria a fim de evitar o perdimento.
Porém, a retro mencionada Instrução Normativa oferece ao importador outros meios de proceder normalmente com a mercadoria, sem que se faça necessária a impugnação ao auto de infração. Ou seja, verifica-se um desalinho entre as normas que versam sobre o tema.
Ainda antes de aplicado o perdimento, em virtude de ser a sanção aduaneira mais grave, as normas concordam quanto à possibilidade do importador de requerer a conversão da pena de perdimento em multa equivalente a 100% do valor aduaneiro da mercadoria importada.
Entretanto, ainda há uma disparidade entre o caráter da pena de perdimento e a disposição do Art. 737 do Regulamento Aduaneiro, o qual dispõe sobre a possibilidade de relevação da pena de perdimento. A relevação é admitida para infrações das quais não haja insuficiência ou falta de recolhimento de tributos, ou seja, o abandono é uma infração que admite tal relevação. A disparidade está nesse ponto: Se a aplicação do perdimento é o “final de tudo”, como pode ter uma relevação posterior?
É de fácil percepção que, tanto a aplicação como as conversões e valores da pena de perdimento, atualmente, estão confusas e engessadas no ordenamento jurídico. É necessária uma síntese das normas reguladoras do perdimento de mercadorias em virtude do abandono, e faz-se urgente um “update” na legislação atual, uma vez que o auto de infração não tem clareza suficiente para permitir, aos importadores e seus despachantes, uma interpretação assertiva quanto às ações a se tomar.
Desta forma, é de suma importância que os contribuintes ingressem em defesa de seus direitos, até mesmo para construir precedentes para a exposição das brechas e obscuridades existentes nas normas regulamentadoras da pena de perdimento.
Por Gabriel Cauan Corrêa – 15 de junho de 2021
Equipe Marcelo Morais Advogados