Carf decide pela tributação de incorporação de ações ainda que haja cláusulas suspensivas
5 de Novembro de 2021Solução de Consulta nº 3.014, de 04 de novembro de 2021
8 de Novembro de 2021É consabida a relevância do comércio internacional de bens e mercadorias para o desenvolvimento de qualquer país. Nem sempre é compreendida, porém, a necessidade de se manter um eficiente controle aduaneiro, protegendo-se os valores e limites inseridos na política de comércio exterior – caso do Brasil, sobretudo quanto às regras aduaneiras relacionadas à importação.
O perdimento, um dos mais controvertidos institutos aduaneiros aplicáveis a esse contexto (das importações), embora não conste (como constava outrora) da explicitude da Constituição vigente, tem sido tomado como legítimo instrumento pelos tribunais,[1] premissa de que partiremos por apelo pragmático.
Possível defini-lo, com a licença de uma figura de linguagem, como “pena capital”, posto que implica, na prática, o confisco pelo Estado-Aduana do bem importado – nacionalizado ou não –, o que se daria com a prolação de decisão administrativa em instância única.
Justamente por esse “detalhe” – a ausência de oportunidade de revisão, em nível administrativo, da decisão ensejadora do apenamento –, inúmeros são os casos reprojetados para o Judiciário, num movimento claramente destituído de sentido, visto que amplifica o estado de contenciosidade (na contramão do que a contemporaneidade propõe), exacerbando a geração de custos plenamente evitáveis.
A consulta a alguns dados é o que basta para demonstrar a expressividade do tema: em 2017, foram aproximadamente 28 mil penas aplicadas;[2] em 2020, o valor das mercadorias apreendidas alcançou em torno de R$ 425 milhões, enquanto o de créditos tributários lançados, inclusive de multas por conversão de perdimento, mais de R$ 7 bilhões.[3]
O perdimento de bens e mercadorias tem previsão em Decretos-Lei (DL) editados nas décadas de 1960 (DL 37/66) e 1970 (DL 1.455/76). Essas disposições normativas – que têm força de lei – foram expedidas a partir do Poder Executivo, que exercia, de forma predominante, a atividade legiferante sobre o tema.
Sabemos, a par disso, que a Constituição em vigor não mais concebe essa espécie de produção normativa, admitindo, contudo, a convivência de DL’s que não sejam com ela incompatíveis – exatamente o caso no caso do perdimento.
De acordo com o DL 37/66, o perdimento pode ser aplicado em diversas situações, ora tipicamente aduaneiras – como nos casos de mercadoria ocultada a bordo de veículo ou em zona primária –, ora por questões tributárias – como quando, mediante artifício doloso, os tributos devidos são recolhidos apenas em parte.
Referido DL consigna 19 hipóteses em que a sanção é imponível (art. 105). O DL 1.455/76, por sua vez, preconiza a aplicação da pena de perdimento em relação a infrações que configurem dano ao erário, abrangendo, além das hipóteses antes mencionadas, situações como a da ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou do responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros (art. 23).
Em todas as hipóteses, verifica-se que há elástica margem para subjetividade, vez que as autoridades envolvidas, tanto a aplicadora como a julgadora, podem fundamentar suas conclusões a partir de uma interpretação “solta” dos fatos e que não desfia contraposição – pense-se, por exemplo, na subsunção da ocultação do sujeito passivo à noção de fraude; no sistema atual, se o julgador administrativo considerar que assim as coisas se configuram, a única alternativa que sobra ao administrado insatisfeito será levar o tema ao Judiciário.
É mais que reconhecida, a despeito disso, a relevância, como derivação da ideia de devido processo legal, do princípio do duplo grau de jurisdição: é de tal princípio que decorre o direito à revisão das decisões tomadas pelo Estado, inclusive em sede administrativa.
Essa, aliás, é a regra em matéria tributária e aduaneira: o sistema, em razão da peculiaridade dos temas, oportuniza aos litigantes a discussão técnica e, na maior parte das vezes, com julgadores paritários em órgãos colegiados superiores da administração.
Mas por que com o perdimento seria diferente? Sendo diretos, podemos dizer: porque o direito positivo assim prescreve e porque o STF consignou, no julgamento da ADI n. 1049-2/DF, que a ausência de previsão de recurso na esfera administrativa não ofende garantias constitucionais. Em razão disso, segundo o DL 1.455/76 (art. 27, §4º), “após o preparo, o processo [de perdimento] será encaminhado ao Secretário da Receita Federal que o submeterá a decisão do Ministro da Fazenda, em instância única.”
A relevância do assunto foi reconhecida pelo legislador, o qual, à época, considerou que a decisão deveria ser proferida pelo então Ministro da Fazenda. Teleologicamente, considerou que decisão proferida pela máxima autoridade tributária-aduaneira não demandaria revisão administrativa, desconsiderando, no entanto, que a atividade em questão é, na prática, delegada ao Secretário da Receita Federal e subdelegada aos titulares das unidades aduaneiras.
A delegação e subdelegações do julgamento em instância única de defesa contra a pena de perdimento perverte o objetivo almejado pelo legislador, visto que, em rigor, se julgado pela autoridade imediatamente superior ao agente aplicador da sanção, a importância conferida ao assunto não seria prestigiada. Nesse caso, razoável conceber a possibilidade de revisão administrativa por órgão colegiado e paritário.
Outro aspecto que permite considerar a pertinência de se estabelecer a recorribilidade administrativa em casos de perdimento reside no fato de que a pena, para os casos em que as mercadorias não são localizadas ou tenham sido consumidas ou revendidas (DL 1.475/76, art. 23, §3º), é convertida em multa equivalente ao valor aduaneiro. Nessas situações, se a impugnação ao auto de infração for julgada improcedente pelas Delegacias de Julgamento, é possível a interposição de recurso voluntário a ser apreciado pelo Carf. Vale dizer: se a essência do problema, na hipótese, é o dano ao erário, seria isonômico conceder ao perdimento em si o mesmo tratamento deferido ao perdimento convertido em multa, pois, ao fim e ao cabo, o que é julgado é a pena de perdimento, cerne da questão.
É nessa senda que importantes precedentes do Carf delimitam a aplicação do perdimento de bens no espeque controvertido de “dano ao erário”, especialmente nas circunstâncias relacionadas às acusações de fraude ou simulação em interposição fraudulenta de terceiros, precedentes esses que, muitas vezes, não são levados em conta nas decisões exaradas em instância única.
Nesse particular, a discussão colegiada promovida pelo Carf é impulso para busca da melhor prestação jurisdicional nos casos de ampla subjetividade na caracterização de ilícitos aduaneiros.
Por fim, mas não menos importante, lembremos que a vedação ao recurso administrativo para a pena de perdimento encontra(va)-se sedimentada, em sua gênese, em DL’s, aos quais se oporia, hoje, o Protocolo de Revisão da Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros (Convenção de Quioto, CQR), instrumento internalizado no sistema nacional por meio do Decreto 10.276/2020 e que passou a prever o direito de recurso administrativo em matéria aduaneira.
A CQR prevê, com efeito, que tal recurso esteja previsto na legislação nacional, sendo tal previsão extraível do Decreto 70.235/1972, sabidamente detentor de status de lei.
Além da CQR, a necessidade de previsão de recurso administrativo, também está prevista no Protocolo de Emenda ao Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio, o qual comporta o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), devidamente internalizado no ordenamento jurídico brasileiro (art. 4º do Decreto 9.326/2018).
Em razão disso, considerando a estatura de lei conferida aos tratados internacionais, possível asseverar que, seja pelo critério cronológico, seja pelo da especialidade, a regra insculpida nos DL’s de base encontra-se suplantada, o que nos inspira a propor, para fins de definitiva superação do problema, as seguintes alterações da norma aduaneira infralegal, o Regulamento Aduaneiro, atualmente veiculado pelo Decreto 6.759/2009, acolhendo-se a seguinte redação:
Art. 774. As infrações a que se aplique a pena de perdimento serão apuradas mediante processo fiscal, cuja peça inicial será o auto de infração acompanhado de termo de apreensão e, se for o caso, de termo de guarda fiscal (Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 27, caput).[4]
Parágrafo único. Feita a intimação, pessoal ou por edital, caberá impugnação, no prazo de trinta dias, observados o rito e as competências recursais estabelecidas no Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972 (Protocolo de Revisão da Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros – Convenção de Quioto – Decreto nº 10.276/2020, capítulo 10).
Além da alteração no Regulamento Aduaneiro, o Decreto 70.235/1972 também poderia-deveria ser alterado para contemplar os prazos reduzidos para julgamento em caso de perdimento com apreensão de mercadoria e entrega antecipada não autorizada, estendendo-se essa mesma medida ao Regimento Interno da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Economia, bem como o do Carf.
[1] V. por exemplo, TRF-4, APELAÇÃO CÍVEL Nº 5001989-92.2015.4.04.7012/PR: “ADMINISTRATIVO. PENA DE PERDIMENTO. CONSTITUCIONALIDADE. CABIMENTO EM PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. INCOMUNICABILIDADE ENTRE AS ESFERAS CRIMINAL E ADMINISTRATIVA. O Egrégio Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade da pena de perdimento por danos causados ao erário, por haver previsão expressa na CF de 1967 (RE n.º 95.693/RS, Rel. Min. Alfredo Buzaid). A falta de previsão expressa na CF/88 não importa concluir por sua inconstitucionalidade ou não-recepção. Através do devido processo legal, o direito de propriedade pode ser restringido, porque não-absoluto. A validade do perdimento é nossa própria tradição histórica de proteção do erário. A aplicação do perdimento obedece à razoabilidade, pois a sua não-aplicação implica aceitar que alguns se beneficiem às custas de toda a sociedade. A pena de perdimento, após a CF/88, é plenamente aplicável também no processo administrativo fiscal. As esferas penal e administrativa são independentes quanto à pena de perdimento aduaneiro, realidade que permite soluções díspares para o mesmo caso.”
[2] Cf. LAZARO. Rodrigo. Recurso sobre Perdimento de Bens: Compromisso com as melhores práticas aduaneiras. Jota. 2017. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/recurso-sobre-perdimento-compromisso-com-as-melhores-praticas-aduaneiras-13072018. Acesso: 27.out.2021.
[3] Cf. Balanço Aduaneiro. Disponível em https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/resultados/aduana/arquivos-e-imagens/BalanoAduaneiro2020versofinal.pdf.
[4] Considerando-se o fim da delegação e proposição de julgamento em dupla instância administrativa, ter-se-ia, como natural consequência, a revogação dos §§ 2º ao 11 e respectivos incisos. Noutro giro, é relevante mencionar que o prazo de 20 dias para defesa deve se realinhar com a disciplina prevista no Decreto 70.235/1972 (30 dias), seja pela complexidade dos debates travados na maioria dos casos de perdimento, seja pelo necessário realinhamento normativo de equilíbrio entre as garantias aos litigantes em defesas administrativas federais.
JOÃO MARCELO MORAIS – Mestre em Direito Tributário pela FGV Direito SP. Advogado no escritório Marcelo Morais Advogados e professor. Membro do projeto de pesquisa “Processo Administrativo, Judicial e Execução Fiscal do século 21”, referente à linha de pesquisa “Macrovisão do Crédito Tributário” do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito SP. Membro do Núcleo de Direito Tributário da FGV Direito SP.